sábado, 29 de novembro de 2008

LA FAMME

"Ordinário é um termo muito apropriado, vem da ordem e tem dentro de si a perversão."
 
E lá estava ela, a menina delicada, talvez um pouco recatada. Em meio aos seus afazeres, a preparação para o encontro naquela noite com um rapaz fascinante. Era realmente um dia perfeito! Teria certeiros lábios ágeis percorrendo os seus, com calor de chocolate quente e prazeres de redenção. Ela buscava prazer! Quem não os busca?

E nessa busca incessante do prazer, alguns caminhos antes do encontro derradeiro seriam traçados. Na pressão dos sapatos contra a areia sobre as calçadas, perdia-se o medo de consumir prazeres. Cada passo tornava-se parte de um ritual. Neste cerimonial, meninas delicadas não faziam parte.

Aguardando o trânsito parar, permitindo cruzar aquela via já tão abarrotada de intenções, fez-se mais um com itens a adquirir em meio aos cotovelos e códigos de barra naquele comércio local. Como se tornam estranhas as pessoas ao consumirem, avaliando informações que somente servem para dar certeza que as vidas delas serão seguras – low fat, diet, light, trans 0%. Corroborando com tal sentimento coletivo de manutenção da saúde (risos), seguia ele selecionando os ingredientes para o preparo do jantar. Ele tinha intenções perversas, algumas ingênuas. Antes de finalizar suas compras, esticou seu braço com um movimento exato, e o frio tomou-lhe as carnes, e o último item da extensa lista havia sido escolhido.

Novamente na rua após alguns dinheiros gastos e olhares analíticos na morosa fila do mercado, o vento batia-lhe as faces com suavidade. Para alguns isso é prazeroso, para outros somente um suave começo. Novamente deslizava seus passos sobre areias perdidas e calçadas compactadas com intenções. Já fazia-se tarde, era necessário acelerar os passos, e com mais exatidão esmagar as vontades deixadas pelos outros no caminho que seguia.

Roupas com aromas florais e frescor de sol e brisa. Preparava-se para o banho, a água percorria suas curvas, abrandando os desejos e refrescando a tenacidade da cútis. Em frente ao espelho, flertava olhares com seu íntimo. Tentava prever o que aquela noite reservaria. Permitia-se sentir a ansiedade expandir dentro de si, com seus peitos arfantes presos pela toalha que a envolvia. Tinha muito a fazer! E mais uma lista de preparativos era gradualmente subtraída de um item.

Aquele prédio antigo, sem a segurança neurótica dos dias atuais, permitiu-lhe entrar sem anúncios. Dois lances estreitos de escada, aquela claridade já conhecida e um toque de rubro indicava qual porta devassar. Girou a maçaneta e causou surpresa aos presentes. Havia chegado como sempre lhe causava prazer, surpreendendo! Com rapidez e muitas palavras faladas com um tom de voz mais agudo que o normal, tomou seu lugar na cozinha. Não sem antes ter certeza que suas intenções haviam sido captadas.

Facas, tábuas de corte e todos ingredientes à sua frente. Não queria demorar muito, aquilo tudo era só uma desculpa, um engodo. Claro que teria que ser saboroso, não poderia furtar-se o deleite de agradar a generosa anfitriã. Na sala de banho, em meio ao vapor, revigorava-se uma alma dominadora.

Estava ansioso! Havia esperado com sofreguidão aquele momento. O aroma das preparações do jantar eram suavemente perceptíveis no quarto da anfitriã.  O aroma da pele recém-banhada fundia-se a mais um ato digno da luxúria. Ela em pé, com faces de comando, deliciava o íntimo daquelas carnes preparadas durante todo o dia, temperadas com desejo. Ela tinha esmero no uso de sua virilidade lúdica. Sempre em riste e nunca hesitante, preencheu com satisfação aquele moço, agora obediente. Ele, jovem e malicioso, permitia-se subjugado e tolhido de sua condição de macho. Ela balzaquiana, preparava as carnes de seu prato principal para mais um ato no espetáculo que ainda seguia.

Roupas passadas e já vestidas. A dúvida de qual sapato usar e os minutos para seu galante acompanhante chegar, deixavam-na agitada. Mais um flerte tímido em frente ao espelho e estava pronta. A campainha tocou! Novamente ruborizava, estava feliz, teria uma noite perfeita! Abriu a porta e lá estava ele, alinhado, de banho tomado e com um brilho encantador no olhar. No carro, em meio a muitos risos tímidos e respostas imediatas, a menina delicada pergunta se seu galante companheiro já havia jantado. E ele, transfigurando-se e com um sorriso ainda não conhecido por ela respondeu:

“-Sim! Estou saciado!”

terça-feira, 25 de novembro de 2008

CHOCOLATES

"Que seja doce a dúvida a quem a verdade pode fazer mal."
Michelangelo

Existia doçura durante aqueles segundos, antes do ácido da dúvida corroer a fragilidade da inocência. Em determinados dias, nunca decididos de forma ritualística, colocava seu espírito na rua. Aquele movimento de carros, pessoas e rasgos de conversas incompreensíveis, mesclavam-se aos aromas que nem sempre traziam lembranças de frascos de toucador. Mas era assim que a necessidade permitia-se alívio.

Estendeu o braço de forma conformada, aguardando o bonde frenar e mais uma vez, aos que já haviam-no embarcado, causar a expectativa de qual o acento a ser ocupado. Não raro, nos enfadonhos pedires de licença, encontrava-se  um mórbido sorriso, daqueles com avaliações implícitas.

Neste dia foi diferente, havia um lugar livre de companhias, e assim devidamente acomodado, o movimento daquele carro sobre trilhos incorporava-se ao seu íntimo. Ao seu lado a companhia vazia, que lhe causava imenso prazer.

Chegou seu ponto de descida, e em meio à  agitação comum de cada parada, despediu-se  de seu confortável  lugar como sempre fez: pelos fundos. Aguardou na faixa de pedestres, de forma civilizada, a parada dos carros; e assim transpôs aquela via, já de tantos passos conhecida.

O cenário que surgia na esquina seguinte era a redenção! A certeza da chegada. Então,  dirigia-se àquele prédio, com largas pilastras marcando a entrada imponente. O som dos passos até o elevador exigiam uma respiração mais pesada, não tinha mais como voltar atrás! “-Porque não resisti entrar novamente?”. As culpas consumiam sua  alma como os grãos de areia na rua a sola de seus sapatos puídos.

O elevador já o aguardava, e a ascensorista, com roupas de rubro intenso, cabelos pálidos e olhos delineados à exaustão, com um sorriso de dentes pecaminosos  já sabia a qual andar levá-lo. Aquele perfume era glamuroso na mesma proporção dos botões faltantes  em seu casaco. A porta se abria, novamente aquele sorriso espelhando algo que seu íntimo conhecia bem. Um  corredor claustrofóbico era a maior sensação de liberdade e alívio desde a subida ao comboio.

Levou a mão à aldrava e com três batidas arrítmicas aguardou estático a porta se abrir. Os ruídos do mecanismo da fechadura eram a certeza que o alívio estava próximo. A maçaneta girou de forma suave e o ranger das dobradiças devassaram o corredor com a luz que tornava aquele momento único.

Agradeceu, hesitou em afastar-se e com um sorriso frouxo, repetiu a frase já impregnada naquele lugar: “-Volto semana que vem!”.

Então foi ao sapateiro,  e com alívio trocou a sola de seus sapatos.

domingo, 9 de novembro de 2008

MECENATO ORDINÁRIO

“A solidão permite espaço suficiente para acomodar nossas neuroses, sem precisar olhar para elas todos os dias.” 
Emerson Penso

- Mereço um prêmio! Qualquer um destes que nos fazem acreditar que não somos tão cretinos e mesquinhos.
Esta foi a sensação ao ver meu pensamento moldado em símbolos tipográficos. 
-Quero entre aspas, em itálico. Seguindo o cortejo de palavras: meu nome! Meu crédito! 
Mais uma frase que me foi surrupiada, mas esta com consentimento, e sem feridas expostas.

É irônico usar a palavra “crédito” para dizer: foi quem escreveu isso aí entre aspas. Créditos de qual sorte de valor? Palavra monetária, bancária, ORDINÁRIA! Não pode ser assim! 
Me angustia a idéia de transformar tudo em valor. A moral composta por valores. Canso desta exaustiva luta da perversão por seu lugar de honra na mesa dos justos. Sem ela, que habitualmente aborta-se o crédito iníquo, fatalmente teríamos manuais de boas maneiras como conforto.

E por não ser assim, prefiro o débito intelectual: descapitalizado e sem fundos. Entendo bem os débitos, estes sempre fartos. Fazem-me procurar um fiel depositário, uma alma bondosa que valorize minhas subversões com a propriedade dos mecenas. 
Fundos, no vermelho: é sexy! Assim entendo a natureza criativa e “amada durante quinze meses e onze contos de réis”¹. Os criativos não são férteis na bonança. Precisam de salvadores que cubram seus fundos, enrubescidos pela generosidade! São eles detentores da ordem, do cotidiano e da falta de exceções. O ordinário é o mantenedor das almas caóticas. Estes ruídos salvos como a esperança que o mundo é mais que o som oco da regra fatigante. Esses mecenas habitam o silêncio, vivem a solidão falada na minha frase. Aquela lá em cima, com débitos, procurando por um salvador.

¹ Memórias Póstumas de Brás Cubas – Machado de Assis

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

PASSOS ABAFADOS

"O mesmo homem não pode atravessar o mesmo rio, porque o homem de ontem não é o mesmo homem, nem o rio de ontem é o mesmo do hoje".

Heráclito

Simplesmente saiu: “-Desse mato ainda sai coelho!”.

Sim! Eu havia captado o devir. A percepção dos desejos escondidos, a leitura dos movimentos falsamente suaves.

Não! Realmente não apostaria que minha medíocre frase tornaria-se o frenesi  de uma sexta-feira sem grandes expectativas, comum e até nublada. Aliás, sinto até raiva de ter usado uma frase tão imediata, popular. Mas nesse momento não imagino nada mais direto.

O  prazer da premonição me tomou de forma voraz! Saber que enquanto eu dormia o sono dos justos...  justos eram os desejos de duas pessoas que faziam minha maldição uma ópera luxuriante.  Queria estar lá, ver olhares, palavras gemidas, gírias grotescas que se permitem carinhosas e energizantes quando amantes entregam seus corpos à lascívia.

Não me permito preconceitos... até porque aproprio- me dos conceitos, exaustivamente, por mim testados. Onde existem dois homens com curiosidade, uma mágica acontece! A permissão da invasão. Sem rótulos, sem nomes definitivos: apenas desejos.

Não está entendendo onde quero chegar?! Não mesmo? Explico! Mas não de forma direta, seria enfadonho.

Olhos verdes sempre me desconcertaram, não sei porque, sinto uma simpatia, um fascínio. Em minha direção, aquele simpático desconhecido, de família abastada, claro. Aquele sorriso tão frouxo não poderia pertencer ao mundo dos proletários. Não combina. Apresentou-se cordialmente. Simplesmente pensei em uma infinidade de formas de possuir o que estava em minha frente... paralisei por um tempo.  Logo estávamos indo à casa de meu amigo, filho e primogênito (não vou explicar) e os olhos verdes no carro da frente, movimentando-se na necessidade de entender o caminho à frente. Certamente ele não imaginava as ruas estranhas que iria ter que conhecer depois desse dia.

Chegamos! Desci do carro e meu amigo estacionou dentro de um pátio que mais parecia uma revenda barata de automóveis, dado o número exagerado de carros estacionados aleatoriamente em um espaço mínimo. Passamos pelo portão metálico, destes com sistema de abertura automático, e seguimos ao bloco dos fundos. Um prédio de três pavimentos, antigo, displicente e estranhamente acolhedor.  Subimos as escadas estreitas, revestidas de granito já gasto pelo tempo, e calorosamente fomos convidados a entrar na kitnete de meu sorridente amigo. Atrás de mim, os olhos verdes, com seus coelhos presos...kkkk

Aguardamos a pizza chegar. Durante a espera, tomamos cerveja e falamos muito sobre diversos assuntos.  Risos, lembranças e aquela sensação boa de estar com alguém que se conhece muito. Há muito não estávamos juntos, meu amigo/filho e eu. Os olhos verdes só assistiam a intimidade cômica de dois amigos de longa data. Mas não era só isso que estava sendo mostrado naquele apartamento encarpetado que abafava o som dos passos. Aliás, muitas coisas estavam abafadas. O interfone tocou, o anfitrião desceu as escadas para pegar a pizza. O momento era perfeito, olhos nos olhos, e comecei inspecionar o tal rapaz tão belo na minha frente. Provoquei, não com atitudes, mas com idéias. Dessas que nos fazem colar na cadeira. Diretamente retomei um assunto que já falávamos, e perguntei se ele já tinha vivido, ou tinha vontade de viver... VIVER... uma experiência que se tem quando dois corpos masculinos se encontram nus e vorazes por descobrirem o que mais podem fazer.

Riu, brincou, desconversou e pra ele tudo não tinha passado de mais um “papo” maluco por mim proposto.  A pizza chegou, foi devorada de uma forma ágil.

Duas semanas depois, o mesmo cenário de passos abafados e paredes nuas e displicentes, tornou-se um lugar seguro para os sabores novos, desejados e por muitas vezes rejeitados. Minha profecia se consumou, e com um requinte de sordidez e ingenuidade particulares dos grandes amantes.

Abraços ao amanhecer, receios com a luz lá de fora. Não! Não será mais como fora até ontem à noite. A dúvida consome, incomoda. Mas as sensações ainda presentes pelo corpo não permitem arrependimento.

Resta para mim, um simples profeta da luxúria, aguardar os próximos movimentos. Nesse momento duas pessoas antes intactas, permanecem fixas ao prazer de ontem, ansiosas  com o amanhã.

Que venham:  a noite, os vinhos e, novamente, passos  abafados.