sábado, 25 de julho de 2009

A HORA DA AVE MARIA


"Trair: retribuir a confiança depositada."
Ambrose Bierce





O carro entrava na ponte pelo lado direito, o lado correto. Assim a vida seguia calma, agradável e sem remorsos. A água fervia há algum tempo e era necessário afastar-se daquela janela de dimensões generosas, em ferro preto e vidros brilhantes. Era uma cozinha de proporções generosas, com armários abarrotados de utensílios e mantimentos. A mesa já encontrava-se posta com o cuidado pertinente aos protocolos do bem servir. Havia sido preparada uma sopa típica da culinária italiana. Tudo estava perfeito, aconchegante e alinhado, como deveria ser.


Os dias seguiam com os rituais apropriados. Manhãs agitadas com a organização da casa, limpeza e dedicação às preparações do almoço. Os cabelos sempre ordenados, a maquiagem discreta e o vestido alinhado com moderação ao corpo tornavam aquela senhora detentora de vários méritos. Suas orações eram diárias pedindo a Deus interceder pelos seus filhos, netos e esposo. Esquecia-se de pedir por suas aflições, que não eram poucas, mas sufocadas com determinação sob as roupas do cesto na lavanderia. Não existia nada mais revigorante que as roupas secas ao sol. Elas proporcionavam a sensação de frescor e limpeza que o sol permite asséptico.


Roupas estendidas no varal, as folhas já recolhidas próximas à uma árvore e um jardim com gramado verde ladeado por uma sebe bem aparada. Era o lugar preferido dos netos brincarem, pois cuidadosamente haviam sido dispostas as estátuas da Branca de Neve e seus anões. Elas foram colocadas entre galhos e arbustos, não sendo percebidas de forma oferecida. Aquelas presenças escondiam-se, mas por todos eram sabidas. E assim muitas coisas ficavam ocultas por uma escolha estética.


No dia seguinte a chuva auxiliava desde a madrugada as plantas do jardim permanecerem vivas. Era um céu cinza que não encorajava muitos sorrisos. O fogão à lenha reinava absoluto dentro da cozinha, era grande o suficiente para mantê-la aquecida e auxiliava a calefação do corredor que comunicava a cozinha a uma sala de chá e à sala de jantar.


Neste dia seu neto mais velho passaria a tarde com ela. Eles não tinham a intimidade esperada à relação por eles socialmente estabelecida. O menino era muito curioso e contestador para os moldes da alinhada senhora. Para o pequeno travesso, ela parecia não gostar dele. As famílias alimentam estas angústias ao aceitarem que o sangue resolve problemas de comunicação e afinidade. Eles eram estranhos conhecidos em uma tarde chuvosa, presos ao calor do fogão e à frieza do silêncio.


O carrilhão tocou seis vezes! Era uma ordem para colocar-se à janela e verificar de qual lado aquele carro azul metálico adentraria a ponte que comunicava dois lados da cidade e dois lados de uma vida. E os dias de chuva trazem consigo alguns maus agouros. E o carro apareceu com os faróis já ligados pelo lado esquerdo, errado e doloroso.


A senhora sentou-se num banco logo abaixo da janela. Permaneceu imóvel por alguns minutos, com o olhar direcionado aos bolinhos de chuva que permaneciam açucarados dentro de uma tigela de cristal.

Seu neto percebeu o momento em que marejaram os olhos de sua avó. Levantou-se do chão, pegou um bolinho açucarado e ofereceu a ela sem hesitação. A senhora recuperando-se da triste notícia, pegou o bolinho, colocou-o novamente na tigela explicando ao neto que era para seu avô, que logo chegaria. Estendeu-lhe a mão e, com a autoridade de uma senhora cristã, ordenou: “-Vamos orar para a mãe de Jesus! Já se faz as seis horas da tarde, a hora da Ave Maria.”


O barulho do carro anunciou a chegada do senhor daquele lar. Em sua calça branca, alinhada e alvejada com dedicação retornava mais uma vez àquela casa. Trazia consigo o cansaço do dia de trabalho, a pasta com papéis e o aroma de um perfume de rosas que não era adequado à vida de um homem cristão.


Como boa esposa, levantou-se de seu oratório, e com um sorriso comedido perguntou-lhe de seu dia. Sentando-se à mesa foi servido do chá com bolinhos. Chamou o neto,perguntou dos estudos e se tinha se comportado.


A senhora continuava com seus afazeres para o jantar e repentinamente virou-se para o seu senhor e, com um tom de voz estranho e acelerado, falou:” Não! Este bolinho não! Meu neto separou para mim. Os outros são seus.”


E no dia seguinte o sol reinava absoluto e o frio da manhã cobria o horizonte com uma névoa que impedia a visão da ponte pela janela da cozinha. Neste dia, ela desejou que todas as tardes as brumas tomassem conta da paisagem. Ela queria manter seu coração puro e rezar para Maria.


segunda-feira, 13 de julho de 2009

CHORO E JÚBILO

"Há espíritos que escurecem suas águas para fazê-las parecer profundas."

Friedrich Nietzsche


Lá seguia a moça, catando pingos de chuva, redondos, brilhantes e intáteis. Seus pés apressavam-se entre as poças que espelhavam tremidamente as nuvens fartas de precipitação. Aquele dia era especial, e vertia de seus lábios frouxos risos não tão comuns em dias ensolarados. Era assim, uma natureza singular e arfante. Estava comprometida com os passos ruidosos e displiscentes em seu percurso de poucos olhares para o horizonte, mas com com a cumplicidade necessária das pedras do pavimento que conheciam o caminho até o vicariato.


Chegou com a falta de ar característica de sua determinação e ininterruptos movimentos de seus sapatos verdes, amarrados com cadarços distintos e nem de longe confortáveis aos olhos.


Era um caminho estafante, mas a lisura do cumprimento de suas obrigações estavam delineados já em sua atitude enérgica. Despiu-se do impermeável amarelo, os vários pontos cerzidos com linhas coloridas e alinhavos descordenados conferiam um aspecto até simpático para uma vestimenta tão rígida. O aroma de madeira e dos antigos móveis e o piso cuidadosamente encerado dava a sensação de aconchego ao vestíbulo. Isso já lhe recompensava o esforço em auxiliar naquela paróquia rural. Ali era o reduto de sua maior tranquilidade e riqueza.


Após livrar-se dos incômodos sapatos e roupas úmidas, e recompondo-se com suas roupas secas que trazia na sacola, adentrou um aposento maior, com grandes armários e uma mesa com uma toalha branca bordada no centro. Estava na sacristia daquela pequena igreja, que aprendera a cuidar com sua mãe.


Não haviam mais cultos sendo ministradados desde o falecimento do Padre Humbert. Um senhor que sempre fora conhecido pelos reconfortantes sermões nas missas devotadas às despedidas de entes queridos. Nestes momentos de luto, ele lembrava das tranformações das lagartas em borboletas. Recordava a todos a necessidade de aceitar esses momentos da vida. Tanto a morte como o nascimento tinham o mesmo valor. No nascimento, chorava quem chegava, na morte quem ficava.


Então se estabelecia um mistério: “-Qual o motivo do choro dos recém-nascidos?”, e por conclusão “-Qual seria o júbilo dos que partiam?”

Já sentada no primeiro banco, de madeira maciça e devidamente polido, observava o altar, que já tantas vezes a fizera temer, sorrir e aliviar-se. Mas algo diferente acontecia naquela tarde chuvosa. A sensação de solidão e vazio naquele espaço de evangelização fora alterada de súbito. Rapidamente girou seu corpo para os fundos, certa que alguém a observava. Mas nada enxergava. Sentia uma sensação de calafrio, como se o vento intermitente daquelas colinas tivesse adentrado aquele reduto da fé. Com sua tranqulidade estremecida, retoronou os olhos para o altar, porém com alguém mais à sua frente além das estáticas imagens.


Sem palavras, com seus movimentos já tomados de entorpecimento, olhou aquela tão conhecida senhora, que já havia quase esquecido o rosto. Era sua mãe Leonora.


Não acreditando, duvidou imediatamente de sua sanidade. Rapidamente parou com a mão em frente aos olhos, e pediu a Deus que a auxiliasse nesse momento em que sua razão não a deixava compreender.

Ao abrir os olhos, lá continuava aquela senhora, com um semblante tranquilo. Estendendo a mão, disse:


-Tenha fé em teus olhos, pois são eles merecedores de tudo que enxergas. Saiba que se esta casa hoje está sem quem a procura, não é por falta de asseio. Mas é que nem todos tem o merecimento que teus olhos te permitem. Tu enxergas aqui tua fé, outros uma igreja sem um Padre.


Com um aroma de rosas a imagem de sua mãe desapareceu. Ajoelhada em frente ao altar, chorou, agradeceu a certeza de seu trabalho bem feito e entendeu parte do enigma que ficava sempre em sua mente: os que partem tem a certeza que a fé não foi em vão.


Pensou qual seria então o temor dos que nasciam, e colocavam-se em um choro rompido de dor. Talvez a incerteza que nessa vida que iniciava a fé fosse mantida. Talvez o longo tempo que levariam até retornar para aquela existência mais sutil e esclarecida.


Permaneceu ajoelhada por um tempo incerto. Subitamente lembrou que deveria retornar para casa. Levantou e novamente foi surpreendida por sua mãe, que falou:


-Tenha agora minha filha certeza nessa nova fé, aceite oque ela te mostra e liberte-se para seguir teu caminho como hoje sigo o meu.


Os dias passaram, nenhum ruído fora ouvido naquelas colinas. Muitos nasceram, outros partiram nos anos seguintes. Permaneciam lustros os bancos daquela igreja, onde várias fés foram oferecidas, onde Deus recebeu morada em vários corações.

domingo, 12 de julho de 2009

PAREDES VAZIAS

"Nenhum homem é hipócrita nos seus prazeres."
Albert Camus

O nó da gravata era o incômodo limite para um ser devasso. Em trajes alinhados, postura comedida e atitude blasé mantinha sua virilidade sempre audaciosa e perseverante. Procurava na multidão novas texturas de pele e relevos de dorsos necessitados de invasão.

Mas a vida sempre nos aproxima dos nossos desejos, pois são eles a parte mais mentirosa e viva de nossa conduta. Não seria diferente com o voluptuoso cavalheiro alinhado.

Naquele dia, arrastava-se por horas a monótona rotina dos papéis que gritam tipos apáticos, nulos de sexualidade mas portadores de poderes de lei. Na tela do computador caracteres tornavam-se palavras e frases. Invasivamente surgiu o aviso de mais um contato disponível para interagir.

Rapaz franzino e filho-da-puta (literalmente), tinha uma vida noturna e desordenada. Semblante escurecido pela inocência quase nunca protegida, e precocemente perdida. Acordou no meio da tarde da labuta de uma casa noturna. Não era puto, pois não teve a sorte de valer dinheiros com o sexo. Cobrava os outros de seus consumos e excessos. Nessas noites de hálitos alcoolizados, fatalmente parecia ter ingerido algumas doses. Queria abrir os olhos e ter algo diferente à sua espera. Levantou-se do colchão, atirado com displicência no chão do aposento, e foi ao banheiro reavivar as carnes. Ele queria prazer, e de forma servil, estava intimamente preparado para ser possuído.

As paredes com ladrilhos brancos e úmidos, piso de lajotas vermelhas e o teto de madeira decadente testemunhavam seu corpo digno de possessão. No espelho, observou seu olhar melancólico. Apoiou-se no lavatório e respirou com determinação.

Enrolado na toalha puída por inúmeras lavagens, sentou no mesmo colchão e conectou-se à sua vida virtual. Alguém o chamou para uma conversa, e ofereceu-se para complementar o frescor daquelas carnes que deixaram escoar pelo ralo o cansaço de uma vida de aposentos vazios e paredes despidas.

Levantando de sua mesa, organizando alguns papéis e desligando seu computador, avisou com tom levemente autoritário que não retornaria. Estava ofegante, precisava aliviar-se do desejo avolumado em suas calças. Isso seria constrangedor se estivesse despido de seu paletó. Mais uma vez era salvo pela formalidade. Nessas horas até os trajes são estranhamente condecendentes com a manutenção da boa imagem. A moral estipula os comportamentos esperados e ditos corretos. As convenções ajudam o santo e o profano coexistirem.

Passos firmes e olhar brilhante dirigiram-no até a porta de seu escritório. Girou a maçaneta, dirigiu-se ao elevador. Logo estaria lá!

Aquele prédio decadente de dois pavimentos, com uma lavanderia de serviços de qualidade duvidosa no embasamento era o destino daqueles sapatos lustros. Faziam um contraste grotesco com o piso já desgastado e encardido da entrada lateral que levava a uma escadaria.

O interfone tocou e seu corpo esquentou. Após todos os protocolos que a situação exigia (e que eram no mínimo cômicos), a porta do apartamento abriu com um ranger consoante ao das outras portas do pavimento. Ali tudo era decadente, e tudo que acontecia ali era decadente, entretanto não significava não ser prazeroso.

Sem mais protocolos, aquele paletó que tanto escondera a masculinidade viva daquele belo exemplar ariano estava no chão. Bem como suas calças, sapatos e demais vestimentas. Aquele piso de madeira há muito sem nenhum tipo de polimento contrastava novamente com o sapato reluzente. Era certo que só pisava em algo que era inferior.

Sobre o colchão, nada além de dois corpos, agora sim com igualdade: nús. Quantos protocolos mantidos com exaustão pela história são facilmente desprezados e negligenciados para se ter prazer!

A luz que do sol era filtrada pela camada de poeira que já fazia-se estável sobre a superfície vítrea da janela entre-aberta. Tudo era desejo, e o menino franzino se colocava submisso ao seu viril dono. Naquele momento sentia-se como sua mãe. Isso o felicitava, era tão digno quanto ela. Concedia prazeres. E tornava-se mais digno em seu âmago por saber que não cobraria nada por aquele prazer submisso. Isso o fazia mais íntegro que sua genitora. Era assim que ele decidira inconscientemente aceitar sua vida medíocre. Era mártir de um prazer invasivo e de um macho que o dominava por não prometer nada além de companhia em tardes vazias.

O suor já deixava seu odor peculiar no ambiente. A sincronia entre os corpos transformava aquilo em uma dança orgástica. E assim se completou aquele primeiro momento de consumo de prazeres. Após fumarem um cigarro, os pés sentiram o frio do ladrilho rubro. O calor da água era diferente, mas revigorante.

Ainda não estavam saciados, necessitavam ficar nús, usando um o corpo do outro como redenção aos desejos. Não existia amor, existia compreensão. Sem textos delineados ou protocolos do mundo lá de fora. Enquanto mantinham-se despidos, não precisavam nada além de desejo, cigarros e paredes vazias.