"Que seja doce a dúvida a quem a verdade pode fazer mal."
Michelangelo
Existia doçura durante aqueles segundos, antes do ácido da dúvida corroer a fragilidade da inocência. Em determinados dias, nunca decididos de forma ritualística, colocava seu espírito na rua. Aquele movimento de carros, pessoas e rasgos de conversas incompreensíveis, mesclavam-se aos aromas que nem sempre traziam lembranças de frascos de toucador. Mas era assim que a necessidade permitia-se alívio.
Estendeu o braço de forma conformada, aguardando o bonde frenar e mais uma vez, aos que já haviam-no embarcado, causar a expectativa de qual o acento a ser ocupado. Não raro, nos enfadonhos pedires de licença, encontrava-se um mórbido sorriso, daqueles com avaliações implícitas.
Neste dia foi diferente, havia um lugar livre de companhias, e assim devidamente acomodado, o movimento daquele carro sobre trilhos incorporava-se ao seu íntimo. Ao seu lado a companhia vazia, que lhe causava imenso prazer.
Chegou seu ponto de descida, e em meio à agitação comum de cada parada, despediu-se de seu confortável lugar como sempre fez: pelos fundos. Aguardou na faixa de pedestres, de forma civilizada, a parada dos carros; e assim transpôs aquela via, já de tantos passos conhecida.
O cenário que surgia na esquina seguinte era a redenção! A certeza da chegada. Então, dirigia-se àquele prédio, com largas pilastras marcando a entrada imponente. O som dos passos até o elevador exigiam uma respiração mais pesada, não tinha mais como voltar atrás! “-Porque não resisti entrar novamente?”. As culpas consumiam sua alma como os grãos de areia na rua a sola de seus sapatos puídos.
O elevador já o aguardava, e a ascensorista, com roupas de rubro intenso, cabelos pálidos e olhos delineados à exaustão, com um sorriso de dentes pecaminosos já sabia a qual andar levá-lo. Aquele perfume era glamuroso na mesma proporção dos botões faltantes em seu casaco. A porta se abria, novamente aquele sorriso espelhando algo que seu íntimo conhecia bem. Um corredor claustrofóbico era a maior sensação de liberdade e alívio desde a subida ao comboio.
Levou a mão à aldrava e com três batidas arrítmicas aguardou estático a porta se abrir. Os ruídos do mecanismo da fechadura eram a certeza que o alívio estava próximo. A maçaneta girou de forma suave e o ranger das dobradiças devassaram o corredor com a luz que tornava aquele momento único.
Agradeceu, hesitou em afastar-se e com um sorriso frouxo, repetiu a frase já impregnada naquele lugar: “-Volto semana que vem!”.
Então foi ao sapateiro, e com alívio trocou a sola de seus sapatos.
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