terça-feira, 25 de novembro de 2008

CHOCOLATES

"Que seja doce a dúvida a quem a verdade pode fazer mal."
Michelangelo

Existia doçura durante aqueles segundos, antes do ácido da dúvida corroer a fragilidade da inocência. Em determinados dias, nunca decididos de forma ritualística, colocava seu espírito na rua. Aquele movimento de carros, pessoas e rasgos de conversas incompreensíveis, mesclavam-se aos aromas que nem sempre traziam lembranças de frascos de toucador. Mas era assim que a necessidade permitia-se alívio.

Estendeu o braço de forma conformada, aguardando o bonde frenar e mais uma vez, aos que já haviam-no embarcado, causar a expectativa de qual o acento a ser ocupado. Não raro, nos enfadonhos pedires de licença, encontrava-se  um mórbido sorriso, daqueles com avaliações implícitas.

Neste dia foi diferente, havia um lugar livre de companhias, e assim devidamente acomodado, o movimento daquele carro sobre trilhos incorporava-se ao seu íntimo. Ao seu lado a companhia vazia, que lhe causava imenso prazer.

Chegou seu ponto de descida, e em meio à  agitação comum de cada parada, despediu-se  de seu confortável  lugar como sempre fez: pelos fundos. Aguardou na faixa de pedestres, de forma civilizada, a parada dos carros; e assim transpôs aquela via, já de tantos passos conhecida.

O cenário que surgia na esquina seguinte era a redenção! A certeza da chegada. Então,  dirigia-se àquele prédio, com largas pilastras marcando a entrada imponente. O som dos passos até o elevador exigiam uma respiração mais pesada, não tinha mais como voltar atrás! “-Porque não resisti entrar novamente?”. As culpas consumiam sua  alma como os grãos de areia na rua a sola de seus sapatos puídos.

O elevador já o aguardava, e a ascensorista, com roupas de rubro intenso, cabelos pálidos e olhos delineados à exaustão, com um sorriso de dentes pecaminosos  já sabia a qual andar levá-lo. Aquele perfume era glamuroso na mesma proporção dos botões faltantes  em seu casaco. A porta se abria, novamente aquele sorriso espelhando algo que seu íntimo conhecia bem. Um  corredor claustrofóbico era a maior sensação de liberdade e alívio desde a subida ao comboio.

Levou a mão à aldrava e com três batidas arrítmicas aguardou estático a porta se abrir. Os ruídos do mecanismo da fechadura eram a certeza que o alívio estava próximo. A maçaneta girou de forma suave e o ranger das dobradiças devassaram o corredor com a luz que tornava aquele momento único.

Agradeceu, hesitou em afastar-se e com um sorriso frouxo, repetiu a frase já impregnada naquele lugar: “-Volto semana que vem!”.

Então foi ao sapateiro,  e com alívio trocou a sola de seus sapatos.

Nenhum comentário: