segunda-feira, 13 de julho de 2009

CHORO E JÚBILO

"Há espíritos que escurecem suas águas para fazê-las parecer profundas."

Friedrich Nietzsche


Lá seguia a moça, catando pingos de chuva, redondos, brilhantes e intáteis. Seus pés apressavam-se entre as poças que espelhavam tremidamente as nuvens fartas de precipitação. Aquele dia era especial, e vertia de seus lábios frouxos risos não tão comuns em dias ensolarados. Era assim, uma natureza singular e arfante. Estava comprometida com os passos ruidosos e displiscentes em seu percurso de poucos olhares para o horizonte, mas com com a cumplicidade necessária das pedras do pavimento que conheciam o caminho até o vicariato.


Chegou com a falta de ar característica de sua determinação e ininterruptos movimentos de seus sapatos verdes, amarrados com cadarços distintos e nem de longe confortáveis aos olhos.


Era um caminho estafante, mas a lisura do cumprimento de suas obrigações estavam delineados já em sua atitude enérgica. Despiu-se do impermeável amarelo, os vários pontos cerzidos com linhas coloridas e alinhavos descordenados conferiam um aspecto até simpático para uma vestimenta tão rígida. O aroma de madeira e dos antigos móveis e o piso cuidadosamente encerado dava a sensação de aconchego ao vestíbulo. Isso já lhe recompensava o esforço em auxiliar naquela paróquia rural. Ali era o reduto de sua maior tranquilidade e riqueza.


Após livrar-se dos incômodos sapatos e roupas úmidas, e recompondo-se com suas roupas secas que trazia na sacola, adentrou um aposento maior, com grandes armários e uma mesa com uma toalha branca bordada no centro. Estava na sacristia daquela pequena igreja, que aprendera a cuidar com sua mãe.


Não haviam mais cultos sendo ministradados desde o falecimento do Padre Humbert. Um senhor que sempre fora conhecido pelos reconfortantes sermões nas missas devotadas às despedidas de entes queridos. Nestes momentos de luto, ele lembrava das tranformações das lagartas em borboletas. Recordava a todos a necessidade de aceitar esses momentos da vida. Tanto a morte como o nascimento tinham o mesmo valor. No nascimento, chorava quem chegava, na morte quem ficava.


Então se estabelecia um mistério: “-Qual o motivo do choro dos recém-nascidos?”, e por conclusão “-Qual seria o júbilo dos que partiam?”

Já sentada no primeiro banco, de madeira maciça e devidamente polido, observava o altar, que já tantas vezes a fizera temer, sorrir e aliviar-se. Mas algo diferente acontecia naquela tarde chuvosa. A sensação de solidão e vazio naquele espaço de evangelização fora alterada de súbito. Rapidamente girou seu corpo para os fundos, certa que alguém a observava. Mas nada enxergava. Sentia uma sensação de calafrio, como se o vento intermitente daquelas colinas tivesse adentrado aquele reduto da fé. Com sua tranqulidade estremecida, retoronou os olhos para o altar, porém com alguém mais à sua frente além das estáticas imagens.


Sem palavras, com seus movimentos já tomados de entorpecimento, olhou aquela tão conhecida senhora, que já havia quase esquecido o rosto. Era sua mãe Leonora.


Não acreditando, duvidou imediatamente de sua sanidade. Rapidamente parou com a mão em frente aos olhos, e pediu a Deus que a auxiliasse nesse momento em que sua razão não a deixava compreender.

Ao abrir os olhos, lá continuava aquela senhora, com um semblante tranquilo. Estendendo a mão, disse:


-Tenha fé em teus olhos, pois são eles merecedores de tudo que enxergas. Saiba que se esta casa hoje está sem quem a procura, não é por falta de asseio. Mas é que nem todos tem o merecimento que teus olhos te permitem. Tu enxergas aqui tua fé, outros uma igreja sem um Padre.


Com um aroma de rosas a imagem de sua mãe desapareceu. Ajoelhada em frente ao altar, chorou, agradeceu a certeza de seu trabalho bem feito e entendeu parte do enigma que ficava sempre em sua mente: os que partem tem a certeza que a fé não foi em vão.


Pensou qual seria então o temor dos que nasciam, e colocavam-se em um choro rompido de dor. Talvez a incerteza que nessa vida que iniciava a fé fosse mantida. Talvez o longo tempo que levariam até retornar para aquela existência mais sutil e esclarecida.


Permaneceu ajoelhada por um tempo incerto. Subitamente lembrou que deveria retornar para casa. Levantou e novamente foi surpreendida por sua mãe, que falou:


-Tenha agora minha filha certeza nessa nova fé, aceite oque ela te mostra e liberte-se para seguir teu caminho como hoje sigo o meu.


Os dias passaram, nenhum ruído fora ouvido naquelas colinas. Muitos nasceram, outros partiram nos anos seguintes. Permaneciam lustros os bancos daquela igreja, onde várias fés foram oferecidas, onde Deus recebeu morada em vários corações.

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